Lendas e Curiosidades: "Quinhentos pássaros, quinhentas crianças"!

"Peço licença ao dono da festa para trazer aquela garça que atravessa nesse instante o Paraná do Ramos, que banha a minha Barreirinha. Vem no vento, as asas imóveis, são pura luz. Á suavidade do seu voo, solitário e silencioso, parece um cântico. Preciosa prenda da Natureza, que nos convence de que nela - e não na literatura, por mais fantástica que seja - é que está a realidade mágica, o real maravilhoso do reino desse mundo.
Trago também o canto dos pássaros noturnos. O bacurau, que semeia pela noite as sementes do cacau, como canta o poeta Aníbal Beça. As corujas que velam cantando meu sono. São várias, cada qual com seu jeito sonoro de atravessar a noite. O canto delas é grave de timbre, mas longe de ser triste. O que mais me afaga é o da coruja brancona, que mora nas palmas mais altas da inajazeira. Quando a noite vai findando, todas cantam juntas: é um canto prolongado e um tanto aflito, com o qual elas se despedem das estrelas.
Só não trago a suinara, que os caboclos chamam de rasga-mortalha. Dizem que seu canto agudo e rascante anuncia morte - e a nossa taça é de esperança e de vida.
Sinto pena de não trazer o gavião tão meu amigo, porque ele deixou de me ver. Pelo estremecer das asas brancas, o brilho avermelhado do peito e sobretudo pelo negro esplendor do seu bico, eu sabia que era ele, o meu gavião. Chegava de tardinha, de começo desconfiado, olhando oblíquo, pousava, delicado como uma pomba, no parapeito largo de Itaúba. Ficava me olhando, a grossura das garras me assustando, eu estirado na rede de tucum. Demorava pouco, erguia voo, descobri que dando as suas voltas, não deixava de me olhar. Um dia chegou, pulou do parapeito para o punho da rede e me olhando disse que gostava de mim.
Era um gavião-pinagé, de rapina, mas de boa índole. Comia castanhas de caju, tucumãs maduros. De tanto se sentir aconchegado, acabou se fazendo companheiro de japiins, pipiras, saracuras e até, Deus o louve, dos tucanos. Uma tarde chegou, ficou e olhando imóvel largo tempo, depois voou. Regressou, vi que seu olhar era de tristeza só, não soube me contar a sua pena, e então se foi, as asas lentas, desapareceu no fim dos verdes. Nunca mais voltou. [...]." Thiago de Mello. Quinhentos pássaros, quinhentas crianças. In: ELETRONORTE. Brasil: 500 pássaros. 2000.
 
 
 
Corujas
Ilustração de Ernst Lohse (1873-1930)
Álbum de Aves Amazônicas 1900-1906.




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