A naturalista na floresta


"[...].Tão distraída andou porém que a noite a surpreendeu numa clareira rasgada na floresta. O céu fosco, sem ameaça de chuva, mas também sem a rosa do sol, lembrava esses dias toldados de cinzento que aparecem no Alto Amazonas ao tempo das friagens, de maio a agosto. Calma, confiante no astro a surgir e que a orientaria, Snethlage reuniu um pouco de sacaís, ateou-lhes fogo e, para alimentá-la durante a noite, arrastou para junto da fogueira vários galhos de árvore por ali tombados. Fez a cama de folhas secas perto das labaredas e recostou-se no chão com a espingarda no regaço. Adormeceu profundamente. Ao repontar baço da claridade notou que o dia de novo não deixaria ver o disco vermelho do sol, o que a impossibilitava de se orientar ao rumo do rio. Comera na véspera o chocolate que levara. Era preciso arranjar alimentos.
Prestou atenção em roda e viu uma grande árvore de caju do mato. Foi até embaixo da copa monumental onde recolheu muitas frutas, doces, vermelhos, saborosos. Chupou alguns e assou as castanhas. Muito próximo, um uxizeiro estrelava o chão de uxis. Juntou vários. Por sua vez as sapucaias, de ouriços abertos nas árvores, deixavam cair as castanhas magníficas, estivando o solo de amêndoas. Passou de novo o dia caminhando a esmo até que se viu forçada a escolher um ponto em condições de pernoitar. Outra vez reuniu muitos galhos e sacaís, acendendo uma fogueira, junto da qual ela se deitou. Agora porém algo inquieta, apreensiva mesmo. Das vinte e uma horas em diante, o ruído na floresta fora infernal: assobios, gemidos, soluços, quedas de frutos, estrídulos, urros, pipilos, passadas, correrias, choques de cascos, bicadas na madeira, arrasto pelas folhas secas no chão, mandíbulas a roerem, pulos, cipós a se agitarem, baques de corpos em luta, zunidos, cápsulas e frutos a se abrirem com a força de molas de aço.
Na maioria dos casos Snethlage conhecia o bicho que determinava este ou aquele ruído, tantas observações já fizera sobre a vida animal da nossa fauna. Por fim, o cansaço a empolgou e dormiu no meio da jangla ao som dramático daquela música do teatro amazônico. Aos primeiros cantos da maria-já-é-dia levantou-se ao pé do brasido quase  extinto e refletiu no que se passara, recordando-se dos comentários do seu grande patrício Alexandre Humboldt, que fora o primeiro letrado a registrar quanto são silenciosos os dias na mata amazônica e quanto são ruidosas as noites, [...].
Sem o sol, tornou a caminhar ao acaso, alheia a qualquer diretriz. Passou por uma plantação de milho cujas espigas atingiam cerca de quarenta centímetros, sendo os grãos alternadamente vermelhos e pretos. Examinou algumas verdoengas. Saborosas. Era o célebre milho do índio que os botânicos brasileiros da atualidade classificavam de nativo. Cruzou depois outra desenvolvida plantação de abacaxis, também visto agora como indígena. Recordou-se porém das polêmicas já havidas a respeito dos nomes e das espécies. Porque alguns diziam que o ananás provinha do abacaxi e vice-versa; era ananás e não abacaxi. Hoje, no entanto, está absolutamente provado entre botânicos e filólogos que do abacaxi proveio o ananás e que o nome indígena é o primeiro. Ananás o chamaram os conquistadores. [...].". Raimundo Morais (1872-1941). Os Igaraúnas. 1985. p. 199-200.


Ananas.
Trew, C. J. ; Ehret, G. D. Plantae selectae quarum imagines ad exemplaria naturalia Londinei, in hortis curiosorum nutrita. [s.l. s.n.], 1750-1773.
 www.biodiversitylibrary.org

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