Enquanto o sabiá cantava


"Apesar de sozinha a gentil lavadeira não estava sossegada.
Ora seu corpo cortava airoso como o da irerê as águas claras da bacia sobre as quais boiavam seus negros cabelos, quando não repousavam úmidos no dorso lustroso.
Ora fazia de uma folha, que a sua mãozinha travessa ia buscar aqui ou ali, uma canoazinha que punha-se a impelir com o sopro de sua boca mimosa até ela ir ao fundo. E quando se dava este naufrágio, como se ele a divertisse muito, seus lábios arroxados abriam-se em um riso alegre e ruidoso, deixando ver duas ordens de dentes pequenos, apontados e alvos como os jasmins que usava em seus cabelos.
E o brinquedo continuava. Brincava e ria sozinha como as aves suas companheiras que cantam na solidão.
Como era bela assim!
E o sabiá cantava e ela escutava-o.
O pássaro notou essa atenção e estimulado soltou uma escala nítida, estridente, argentina, clara.
Depois começou uma ária, melodiosa, sublime, em que a sua voz alcançava todos os tons com uma clareza e perfeição dignas de reparo, sobre os motivos talvez de alguma Lucia dos bosques.
Às vezes o canto tomava uns acentos clássicos que recordavam Stuck ou Mozart; outras havia nele uma melodia terna que lembrava Verdi.
Os japiins escolheram o seu melhor cantor para zombar da ave rei das matas. Ele fez fiasco. Não conseguiu arremeda-lo. O chilro do pássaro passava do lírico ao épico, do épico ao bucólico. Ora era pastoril, terno, apaixonado. Ora era altivo, arrogante, épico. Havia algumas notas que pareciam uma risada. Tinham seu quê de chacota, Offenbach misturava-se com Rossini.
Os japiins estavam mudos, corridos de vergonha.
E a gentil lavadeira parara de folgar e escutava, com a bela cabeça erguida, o canto do carachué. [...]." José Veríssimo (1857-1916). Primeiras páginas. 1878, p. 83-85.
 
 
 
Carachué (Sabiá) - Cutipuruí - Vô-Vô - Peruinha-do-campo.
Álbum de Aves Amazônicas -  1900-1906.
Ilustração de Ernst Lohse  (1873-1930).


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