O sabor especial do Bacuri
"Além dos frutos que são verdadeiros "pratos", como o açaí, a bacaba, o piquiá, a pupunha, [...], a Amazônia oferece-nos uma surpreendente feira de produtos que são metade flor, metade alimentos, com os quais se delicia o paladar dos nativos, dos turistas, e até o dos convivas dos grandes centros urbanos.
É tão especial e substancioso de certos frutos tropicais, que Nunes Pereira coloca os carás, as castanhas (além da do Pará, existe a sapucaia), a pupunha, a sorva, o tucumã, o umari e o uxi na rubrica dos alimentos.
É o caso do bacuri, que o Barão do Rio Branco adotou como sobremesa dos grandes banquetes oficiais do Itamarati e de que era apreciador nato.
Sua preferência levava-o a tornar-se um exímio propagandista das excelências dos frutos tropicais, por ele considerados não só uma dádiva da terra, mas um manjar dos céus. [...].
Anote-se, entretanto, em favor da benevolência do seu paladar, que o fruto em calda, enlatado para exportação, está longe de ser o pomo dourado que acode cientificamente pelo nome de Plantonia insignis e pertence, na botânica à família das gutiferáceas. [...].
Porque o bacuri fresco não emigra. É uma fruta delicada e perecível, cuja degustação só é permitida em seu habitat. Tem que ser apanhada e comida no mesmo dia. Apesar da casca resistente que a protege, é sensível ao tempo; e em vinte e quatro horas perde a frescura imaculada de sua polpa, azedando e apodrecendo rapidamente.
É encontrado nas canoas do Ver-o-Peso e nas quitandas de Belém em paneiros esguios, vendidos a bom preço. [...].
O bacuri passa por ser um fruto que tem gosto de flor. Essa, pelo menos, a impressão colhida entre os seus degustadores, isto é, entre aqueles que o provam sob a forma de compota.
Saboreando o fruto fresco, a impressão é diferente. Quebrada a carapaça que o envolve, o bacuri nos parece na plenitude de sua composição, provocando água na boca pelo perfume que exala em seu contexto original: o caroço vestido de branco e revestido de duas membranas que se despregam como pétalas liriais de um seio materno.
É talvez por essa razão que os naturais chamam de mãe ao caroço que guarda as cartilagens a ele aconchegadas. E apelidaram de filhos as polpas móveis que cobrem o caroço acetinado. Espécie de bislíngua, aquela planta herbácea, cujas folhas dobradas dão a ideia de duas línguas juntas.
Só os que provaram o fruto despregado da casca é que podem atestar o sabor especial do bacuri, sobretudo das duas hastes brancas que se desprendem do caroço para o paladar dos naturais. Constitui um privilégio que a natureza nos oferece a degustação dessas polpas aciduladas. Nada existe de parecido como tentação e gosto de pecar.
Se a Amazônia, em vez de ser o inferno verde, tivesse sido o paraíso, seria com o bacuri e não com a maçã que a serpente teria provocado o desejo de Adão. Porque no bacuri é que se encontra resumido o mundo: a inocência e o pecado, a mãe e os filhos.
Quem prova o fruto fresco saboreia os dois e pode ter a noção exata do que é a carnação de ambos como capricho e requinte da Pomona Amazônica. [...]". Osvaldo Orico (1900-1981). Cozinha amazônica: uma autobiografia do paladar. 1972, p. 135-137.
Bacuri (Platonia insignis) Ilustração de Eron Teixeira |
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