O Gaturamo: o mavioso cantador das matas
"Talvez nenhum outro pássaro cantor seja mais querido dos nossos escritores, do que o gentil, minúsculo e faceiro gaturamo, o mavioso cantador das matas, dos campos e dos quintais; e mais das taperas e das capoeiras, cujo silencioso abandono ele desperta com o seu canto às vezes, terno, vivo, alegre, outras vezes, apaixonado, nostálgico, sentido.
Nem o sabiá, melodioso flautista de asas, que Gonçalves Dias imortalizou, e que, pela madrugada e ao cair da noite, pelos mesmos pousos do gaturamo, desfere as notas do seu cantor vibrante e suave; nem o rouxinol, com as suas endeixas inspiradas, maviosas; nem o canário, com a variedade medida de seus acordes, nem a juriti, nem a rola, com os seus arrulhos, queixosos, tocantes; nem o bicudo, o curió, as patativas, os brejais, nos seus dulcídios gorjeios; nem os caboclinhos, com a ternura dos seus descantes; nem todos os outros cantores emplumados, jamais mereceram a estima, o afeto, a simpatia geral, que o gaturamo desfruta, indiferente, saltitante, jovial, modesto. [...].
Na literatura mitológica dos índios ou melhor, na crendice indígena, é o espírito de bondade e virtude, a alma boa, justa, medida, tal assim quer dizer gaturamo, corrupção de angaturama, lindo vocábulo da língua tupi.
Do sul ao norte do Brasil, o gaturamo, com este ou com outros nomes, é sempre o mesmo bardo de penas, o cantador das goiabeiras, dos laranjais e cajueiros, o musicista alado das selvas.
Todos nós, os que não nascemos nas capitais, nem nas grandes cidades, guardamos, de criança, uma lembrança desse canto, que é bem como a alma da saudade, a remoçar-nos à estância dos primeiros anos. [...].
Em nosso Estado, o gaturamo, como em todo o Brasil, existe por toda parte.
Nas taperas e nas capoeiras, é sempre o primeiro que ouvimos, entre os musicistas emplumados dessas paragens.
Aquele garganteio, sonoro, agradável, variado, derrama-se sobre a tapera, como um canto de aleluia, sob as abóbadas de um templo abandonado.
É um acorde espiritualizante, transcendente, na solidão agreste das ruínas.
Quem, por um dia de verão, haja visitado um sítio em abandono, a cujo meio da chácara assente a velha casa de antiga fazenda ou seringal antigo, jamais esquecerá esse gorjeio enternecido, quase suspirado, do cantadorzinho de penas.
Mas, se o ouvirmos nos campos ou nos quintais, temos a impressão de outro canto, alegre, vivo, rútilo, pomposo. A nostalgia insólita da tapera, sucede, então, a nota ardente, tonificante da alegria.
E quando, por uma vereda ou caminho da mata, se nos depara a avezinha, cantando, como que sentimos, nesse canto, um misto de alegria e dor, de tristeza e contentamento.
E o cantor ingente, saltitante, faceiro, borboletando, gentil, por entre as árvores, muda, a cada instante, de pouso, seguido por uma nuvem de companheiros, chusma de pássaros de toda a espécie, que, de certo, ou faz coro ao artista, ou assiste estupefato ao concerto harmonioso do músico divino.
Há várias espécies de gaturamo.
Goeldi fala em 32 e delas diz pertencerem 18 ao Brasil.
Aquela a que nos referimos é a Euphonia violácea, que é a do nosso tem-tem de-papo-amarelo. Mas devemos anotar que apesar das variantes do colorido, nas diversas espécies, quem estiver habituado ao trato com os indivíduos da Euphonia violácea, facilmente reconhecerá as outras espécies, que se traem pela semelhança àquela: tamanho, porte, sibilo e voo; nenhuma, porém, igualando-a, no canto inimitável, - a não ser, talvez, o nosso tem-tem da mata, de um brilhante azul, quase negro, e encontros amarelos, como o corrupião do meio norte ou o nosso rouxinol da mata. [...]". Aldo Guajará. De Bubuia. 1925, p. 83-88.
Gaturamo. Rodolpho von Ihering (1883-1939). O livrinho das aves. 1914. |
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