A viagem da naturalista


"Após a baía de Marajó o gaiola penetrou, de novo, no verdejante dédalo de canais. De bordo, como se a viagem fora num trem que rodasse ao longo das vivendas marginais, descortinavam-se mil aspectos da terra e do homem, da natureza e do roceiro.
O navio passava por uma série de canaviais verde-claros que envolviam os carunchosos e antigos engenhos de açúcar e cachaça, produtos que já haviam feito a prosperidade do município de Igarapé-Miri; passava ainda por vários arrozais recordantes dos remotos soques de arroz da capital paraense; e também por milhares de espigas douradas que evocavam as broas portuguesas e as canjicas brasileiras.
D. Emília Snethlage, sentada numa cadeira de lona à proa, de binóculo em punho, ia observando esses típicos e curiosos trechos da grande orla do estuário tocantino. As manifestações botânicas, os taludes, baixos como ravinas, os sítios, bem tratados uns, abandonados outros, as barraquinhas pobres de troncos de miriti tuíras deitadas no porto, a maneira de ponte de desembarque, a criação galinácea, as crianças nuas nos terreiros, os cães latindo, as reduzidas hortas em paneiros e vasilhame furado espalhados em jiraus, os pecos jardins de crótons e cristas de galo, as cordas de roupa secando, tudo enfim era motivo dum alto exame da parte da naturalista.
Trecho esse, invulgar no golfo amazônico, impressionava até mesmo aquela notável mulher voltada para a ciência. Seus estudos referentes à ornis do anfiteatro avançavam com rapidez e o melhor documento era o seu monumental Catálogo de Aves Amazônicas, prova de vastos conhecimentos a respeito da pena e da asa.
Nisto lhe chegou junto o chefe Igaraúna. Puxou também uma cadeira de viagem e sentou-se.
- Que linda tarde tropical, comentou a doutora.
- Fresca então que nem se discute. Inda há uns renegados que só vivem falando mal do clima, da terra e de nós todos.
- Em compensação, retrucou a zoologista, os sábios fazem uma larga propaganda, não só da gleba como do habitante, caritativo, leal, franco, tão generoso como a própria terra. Sobretudo o clima de Belém, onde as noites, seja verão ou inverno, decorrem dentro da mais agradável temperatura. Um grande patrício meu, Martius, botânico dos mais competentes que já andaram por aqui, manifestava sincera ternura pelo ambiente noturno da principal cidade da Amazônia. Sábio de rara refulgência, adivinhava o preceito emitido por Emberger: "a vegetação é o espelho do clima".
- Dizque um tal de Barbosa Rodrigues, comentou Anastácio, também era pesado em negócio de folha, casca, raiz. Conhecia tanta coisa que até virava cabeça de índio.
- Não há dúvida, confirmou a Snethlage, foi um extraordinário cientista mineiro. Suas obras o atestam, principalmente o Sertum palmarum.
- Bastava, insistiu o chefe Igaraúna, passar o dedo sobre qualquer cipó e cheirar depois o dito dedo para saber logo se tinha ou não veneno. Olhe e veja, minha dona, como esta beirada é cheia de açaí e miriti.
- Aqui é o reino dessas duas palmeiras, retrucou a naturalista. Mas são ribeirinhas, cem metros para além da pestana do rio já se não as vê. Muito amigas do sol, medram nas ribanceiras, onde se lavam de luz.
- É verdade, confirmou o coronel. Mas como vaçuncê sabe dessas coisas? por mal que lhe pergunte.
- Vendo, pesquisando, lendo. Julga o sr. porventura que é a primeira vez que viajo por esta zona?
- Não é?
- Absolutamente. Conheço a região a fundo.
Nesse instante o chefe Igaraúna chamou a atenção para uma sumaumeira sem uma folha, revestida apenas de capulhos de paina creme; dir-se-ia um gigantesco buquê de noiva, cujas flores fossem de seda. [...].

MORAIS, Raimundo. Os Igaraúnas. São Paulo: Roswitha Kempf, 1985. p. 61-63.



Palmeiras Açaí e Miriti
Ilustração de Eron Teixeira

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